ESTAMOS DE FÉRIAS, VOLTAMOS EM BREVE

APOIADORES DOS ESTRANHOS ENCONTROS

Franco Cavezale Grisi | Pedro Faissol | Dinah Oliveira | André Luiz Tosatti

Marcos trabalha editando vídeos. Ele suspeita que sua esposa, Maria, o tenha traído. Mas a única prova que o rapaz tem é uma imagem; e ela não é tão clara.

folha da sessão por Ana Paula Málaga Carreiro

Entrar em contato com filmes que partem de imagens de arquivo muitas vezes se assemelha ao trabalho de um detetive. Você se vê diante de fotografias e filmagens que não sabe de onde vêm, escuta histórias que não sabe se se referem às imagens que vê ou a outras (ou a nenhuma imagem, a ficções). Você vê, imagina, junta fragmentos. É um eterno conflito entre saber e não saber, presença e ausência, memória e esquecimento.

O curta-metragem Vestido Branco (2023), dirigido e roteirizado por Carmem Martins, é construído a partir de imagens de arquivo fotográficas e fílmicas retiradas do acervo de diferentes famílias e conectadas na edição através da narração de uma voz feminina (seria a voz da diretora? Mais um ponto para nossa investigação) que conta a história de Nívea.

 

A sinopse do filme nos diz que se trata de uma “docuficção experimental que remonta a história de uma mulher, e que evoca tantas outras”. Docuficção. Não seriam todos os filmes de arquivo docuficções? Ana Galizia, outra diretora brasileira que utiliza imagens de arquivo no curta-metragem Inconfissões, diz que trabalhar com acervos imagéticos é deparar-se com a incompletude da imagem. Para ela, pensar imagens de arquivo como “representação do real absoluto é negar que elas vão ser sempre inexatas, lacunares, e que muito pode ainda ser completado pelo exercício da imaginação, da ficção. […] Ao invés de um relato histórico e biográfico, organiza-se um tecido instável de acontecimentos do passado sobre os quais é impossível atribuir certezas”.

 

Vestido Branco vai nos dando informações, mas são sempre pistas, fragmentos, nunca certezas. Das imagens, sabemos quase nada, só que são registros familiares de um tempo passado: meninas, mulheres adultas, bebês, alguns homens, imagens do cotidiano. Na camada de áudio, ficamos sabendo que Nívea, quando criança, desejou ser mais velha e poder acompanhar os foliões do Dia de Reis, indo de casa em casa vestindo roupas de palhaço e máscaras. Também aguardava ansiosa pelo momento em que conseguiria ler um livro grosso sem imagens, só com palavras. A menina curiosa acabou se casando ainda muito jovem, pelo desejo da mãe. Criou cinco crianças, quatro que pariu e um filho bastardo de seu marido.

 

O filme começa com a frase “Foi talvez em meados de dezembro daquele ano que a mãe decidiu contar às crianças que o pai não voltaria” e com a imagem de uma gaiola de pássaro na parede de uma casa. A frase não era sobre Nívea, mas no decorrer do curta entendemos que também é sobre ela: uma mulher presa em casa, vivendo um casamento cheio de traições, muito trabalho com as crianças e a cozinha.

Poucos meses após a morte de seu marido, Nívea sumiu e só sua irmã, Maria Iris, sabia onde ela estava. Voltou dez anos depois. Dias antes de Nívea morrer, uma neta perguntou por que ela havia fugido e Nívea respondeu: “porque eu sabia que era a última chance”.

Ana Maria Mauad diz que nunca é possível contar uma história do passado sem tomar como base o tempo presente. A autora afirma que, quando falamos sobre o passado no presente, nesse jogo que se cria entre tempos e entre imagens, o que se cria é “um passado composto pela contemporaneidade, pelo diálogo que estabelece com a sociedade na qual está inserido e da forma pela qual se insere” . Ao ver Vestido Branco, é difícil não comparar e espelhar Nívea conosco, mulheres do tempo presente. Quantas de nós vivemos trajetórias parecidas em relacionamentos? Quantas desejamos fugir por dez anos? Quantas conseguimos sair quando sabíamos que seria a última chance?

Nessa investigação sobre o que é contado, o que é criado e o que foi vivido, Vestido Branco nos convida a preencher as lacunas do filme com nossas próprias vivências. A imaginação do tempo presente encontra as imagens do passado editadas enquanto filme –- acervo que um dia foi registro de famílias, e que hoje é reencenado como documentário/ficção. Didi-Huberman diz que “o próprio do arquivo é a lacuna, sua natureza lacunar”. O que mais quero imaginar agora é essa grande lacuna de dez anos vividos como Nívea quis, onde quis, porque quis. Eu não quero saber o que realmente houve, nesse momento, não quero seguir como detetive. Finalizo meu encontro com Nívea feliz com a lacuna. A imaginação preenche o quadro em um pôr do sol laranja.


Curitiba, outono de 2025
 
¹ Transcrição dos áudios do vídeo “Inconfissões: da ideia ao filme”, 2021. Versão disponível no YouTube.
² MAUAD, Ana Maria. Poses e flagrantes: ensaios sobre história e fotografias. Niterói: Editora da UFF, 2008, p. 60.
³ DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tocam o real (tradução de Patrícia Carmelho e Vera Casa Nova). In: Revista Pós. Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais, 2012, p. 210.

Uma referência

Muita coisa serviu de referência, desde documentários contemporâneos em que é priorizada a abordagem particularizada da micro-história até filmes mais experimentais que trabalham com remontagem de imagens de arquivo, sobretudo filmes de família. Mas Diário de Yunbogi (1965), de Nagisa Oshima, é provavelmente o filme mais parecido em termos de formato — é também um filme de fotomontagem, com narração em off, que sugere uma relação com as imagens mas nunca é explicativo. As fotos que Oshima usa no filme foram tiradas por ele próprio em viagem à Coreia do Sul, enquanto as narrações são baseadas no diário de um menino de dez anos. Contar uma história a partir de imagens é o que faz com que surjam as correspondências. Nesse sentido, diria que essa foi uma obra que me norteou no processo de criação do meu filme.

 

Um filme que programaria para uma sessão conjunta

Provavelmente Terra Femme (2021), de Courtney Stephens. O filme trabalha com imagens de arquivo de viagens feitas por mulheres das décadas de 1920 a 1950, quando pouquíssimas pessoas tinham acesso às câmeras cinematográficas, normalmente classes privilegiadas, normalmente homens. Então o filme trabalha com esse seleto grupo de viajantes que ocuparam esse lugar bastante particular, que era poder explorar o mundo apesar de serem mulheres da primeira metade do século passado, e fazer isso tendo em mãos um aparato de registro. Essas imagens revelam as ambiguidades das condições que as envolvem: em momentos, revela-se um colonialismo vazado pelo olhar; em outros, o que acaba se revelando é um olhar da terra pela perspectiva feminina. 

Então esse é um filme que dialoga bem com Vestido Branco, pelo interesse nas imagens de arquivo como reveladoras de uma experiência de gênero de gerações muito anteriores à nossa. De certa forma, ambos os filmes são movidos por uma desconfiança de que algo nessas imagens nos aproxima dessas mulheres. 

 

Uma amostra do processo criativo

Acho que a coisa mais significativa que eu posso compartilhar é um trecho de uma conversa que tive com a minha avó, a quem eu dedico o filme. A conversa aconteceu no ano de 2021, alguns meses depois que meu avô faleceu. É como se pela primeira vez eu pudesse enxergar minha avó como uma mulher, uma vez que ela havia recentemente se desobrigado de sua função primordial de esposa. E, enquanto esposa, ela teve a vida muito cerceada pela sua condição feminina, em um momento histórico em que a liberdade financeira e afetiva, ou mesmo o divórcio, não eram possibilidades. Nessa conversa, que foi toda gravada, minha avó fala sobre coisas que ela viveu, mas também sobre o que ela não viveu embora desejasse em silêncio. Ou seja, existe uma mulher dentro da minha avó que eu nunca havia conhecido. E acho que isso pode ser dito sobre qualquer avó, bisavó. Há muito mais do que imaginamos, que nunca foi dito. O filme é inspirado na história dela, mas, é claro, muita coisa eu omito ou minto. Depois do filme eu descobri coisas sobre minha família que me fizeram achar o filme ingênuo. A experiência dessas mulheres era muitas vezes de sobrevivência. Algumas pessoas que assistiram ao filme relataram enxergar nele certo horror, e eu acho que faz sentido. De qualquer forma, este é também um filme de muita ternura, porque parte de um olhar meu à minha avó. O trecho que compartilho aqui, da conversa que inspirou o filme, é um momento de conexão intergeracional entre avó e neta: eu reconheço dores minhas nela; ela reconhece sonhos dela em mim.