inconfissões

realização de ana galizia
brasil. 2018. 21 minutos.
em exibição até 5 de junho

O ator e dramaturgo Luiz Roberto Galizia tem a vida recomposta por meio das imagens que deixou, descobertas pela sobrinha e realizadorra que não o pode conhecer. 

“And leaving in a great smoky fury of his loved ones, he sailed backwards to Europe discovering islands, the pale ones and the ones like elephants and those like pearls. 

But the trees shall stand never so high as in his native land! they hoped, but he found ruins and aqueducts and fountains, and loved them.”

Frank O’Hara

Muito do que vemos e escutamos em Inconfissões parece nos levar a outros lugares, ao que se esconde por debaixo dos registros de um indivíduo. Das imagens da cidade que iniciam o curta para as fotos de uma casa e seus habitantes, como que já indicando o homem do mundo que Luiz Roberto Galizia irá se tornar. O que vemos, o primeiro filme super-8 que mostra a família, é contrastado com o que ouvimos: a “síntese de observação psicológica” de um jovem Luiz. O ambiente da casa se torna menos um espaço de nostalgia do que de inquietação, de angústia. A gravação termina com o reflexo de Luiz no espelho, filmando a si mesmo — cena que se repetirá algumas vezes ao longo do curta. Com ou sem barba (ou apenas com bigode), em cores ou em preto-e-branco, no palco ou no cabeleireiro, Luiz por fim aparece envolto e consumido por uma brancura da fotografia, que a cada imagem se torna mais presente, conferindo-lhe um aspecto quase sobrenatural, como se fosse uma entidade, talvez até um santo se desmaterializando em branco durante uma cena, como se atingisse o êxtase divino através de sua atuação. 

Luiz é essa figura que parece estar tão perto quanto distante, como se habitando dois tempos distintos. A impressão que dá é que poderíamos encontrá-lo ainda hoje em um bar, em um teatro, em uma esquina. É, parafraseando Walter Benjamin, um desses homens com os quais poderíamos ter conversado, um desses homens que poderíamos ter possuído. O gesto de Ana Galizia, sobrinha de Luiz, se assemelha ao de Agustina Comedi em filmes como El silencio es un cuerpo que cae (2017) e Playback: Ensayo de una despedida (2019). Ambas as realizadoras encontram em registros do passado imagens do muito que foi escondido e oprimido. São histórias pessoais que contrastam com suas versões oficiais; histórias não concluídas e, portanto, ainda em aberto, o que explica a atualidade dessas imagens, que parecem tão próximas de nós. 

As fotos e gravações feitas por Luiz se misturam com registros do seu trabalho artístico. Como um dândi à la Oscar Wilde, ele parece seguir essa tradição de homens dissidentes cuja vida pessoal era uma extensão de sua arte. O homoerotismo, já presente no início do curta quando vemos Luiz ainda no Brasil, se torna mais explícito com a sua estadia em San Francisco: na parada gay, no desenho de um homem seminu em uma parede, em revistas como Polysexuality, bem como nos homens que vemos através de seu olhar fotográfico. As fotos dos diversos homens que ele fotografou, muitos nus, inseridas nesse mosaico de registros de Luiz, deixam aparecer o caráter erótico do qual estavam imbuídas. Não vemos somente através dos olhos de Luiz, mas sentimos junto com ele o seu desejo. Sobreposta por um relato de seu amigo Zeca, que passou com ele uma noite memorável e sente por não ser capaz de o levar ao aeroporto por conta da presença de sua família no local, a San Francisco dos anos 1970 parece um paraíso de libertação e experimentação sexual.

Apesar disso, ainda paira certa melancolia nesses registros de uma terra estrangeira. Luiz relata um sonho cuja interpretação ele mesmo fornece: ele seria o bebê, que admira muito o pai, mas que deve morrer para sobreviver como adulto. Vemos aqui no Luiz adulto reminiscências do jovem, de sua “tentativa de afirmação através do devaneio”. As fotografias dos homens, ainda que carregadas de pulsão sexual, ganham contornos fúnebres e saudosos quando escutamos um amigo do nosso protagonista relatando que toda semana um conhecido seu morre por causa da AIDS. Inconfissões é inquestionavelmente um registro de certa época da cultura gay, porém, talvez à diferença do caso de Agustina Comedi, o intuito de Galizia não parece ser tanto revelar um passado queer, mas, sim, descobrir esse parente que ela nunca conheceu, criando uma ponte com ele por intermédio de seu filme. Ao tentar descobrir o tio em suas imagens, descobrimos talvez o que ele, autor das imagens, gostaria de mostrar, e é daí que aflora o caráter queer do curta. 

O cinema foi, e ainda é, muitas vezes essa ponte entre os vivos e os mortos: pense na presença de Johanna ter Steege em J’entends plus la guitare (1991), que evoca a memória do relacionamento de Nico com Philippe Garrel; ou na de Isabelle Huppert em Deux (2002), que guarda a “forma e essência divina do amor em decomposição” de duas mulheres queridas por Werner Schroeter: Magdalena Montezuma e Maria Callas. Roland Barthes apontava que, na fotografia, “não sou sujeito nem objeto, mas um sujeito que sente que está se tornando um objeto: então, vivencio uma micro versão da morte”. E com a morte, a fotografia concede a vida eterna, e a revelação. 

“Mais do que isso, não sei se ele contaria”, diz a voz — provavelmente da diretora — em off, perto do fim. As últimas fotografias contam o que as imagens anteriores já insinuavam: vemos Luiz se fotografando em um espelho enquanto recebe uma felação de outro homem. Diferentemente dos outros momentos do curta, aqui não há som, apenas o silêncio. Os nus masculinos, as “noites maravilhosas” que ouvimos em relatos, ganham aqui uma imagem inegável, incontestável: a do sexo, o momento para o qual todo o curta apontava, sua culminação. Nesse encontro erótico entre dois corpos, há o gesto de Luiz em querer que aquele momento íntimo perdure para além daquele tempo. As fotografias de Luiz, que para muitos podem parecer um simples ato de exibicionismo e talvez narcisismo, aparecem como sua forma de registrar algo que era e é continuamente apagado. E é em sua descoberta por Ana Galizia, descoberta de algo que quem sabe fosse inadvertidamente considerado sem sentido, “que podemos encontrar os sinais de uma possível ‘reintegração’ das coisas”. O encontro da diretora com o seu tio, e nosso com ele, nos oferece por último uma imagem que parece o sintetizar: um gesto quase mambembe, espontâneo, carregado de liberdade, ousadia e um pouco de brincadeira, nesse rosto de um outro ligado ao seu membro, que exprime o gozo.

¹ Spiga, Deborah. “O passado como rememoração e redenção em Walter Benjamin”. In: Griot: Revista de Filosofia, 2020.

Duas referências para este filme

Já Visto, Jamais Visto (Andrea Tonacci, 2013) e E agora? Lembra-me (Joaquim Pinto, 2014) são filmes dos quais gosto muito e que se fizeram importantes, cada um à sua maneira, para o processo de realização do Inconfissões

1.

Quando assisti a esse que foi o último filme do Tonacci, realizador que tanto admiro, fiquei fascinada pela forma como materiais de arquivo tão diversos foram aproximados pela montagem. Distante de uma estrutura linear, o fluxo por imagens e sons conduz uma trajetória fluida entre fragmentos dispersos. São pedaços da vida e do trabalho do Tonacci que se misturam tal qual num sonho que é ao mesmo tempo lúcido e misterioso. 

2.

Em E agora? Lembra-me é também a experiência pessoal do realizador que se materializa no cinema, mas, dessa vez, atravessada radicalmente pelo momento da filmagem. No filme, Joaquim Pinto registra sua rotina marcada por tratamentos das complicações provocadas pelo HIV, vírus do qual é portador há mais de vinte anos. As imagens de si alcançam um contorno coletivo em um momento do filme no qual o realizador conversa com seu companheiro, Nuno, sobre aqueles que se foram com a devastação provocada pela Aids nos anos 1980. 


fotograma de Já Visto, Jamais Visto (Andrea Tonacci, 2013) 


fotograma de E agora? Lembra-me (Joaquim Pinto, 2014)

Uma sessão conjunta ideal
Um filme interessante para ser exibido junto com
Inconfissões é Uncle Yanco (Agnés Varda, 1968). Nesse filme, Varda também vai ao encontro de um tio que era até então desconhecido por ela. E de uma maneira muito própria, pela liberdade com a qual faz seus filmes, Varda constrói um retrato encantado desse tio artista e estrangeiro que vive em uma casa-barco nos Estados Unidos.


fotograma de Uncle Yanco (Agnés Varda, 1968)


Duas amostras do processo criativo

Ainda que não tenham sido usados diretamente no filme, muitos materiais localizados em pesquisa foram fundamentais nessa tentativa de constituição fragmentária da vida do meu tio no Inconfissões

1.

Entre eles, um livro escrito por um amigo e parceiro do Luiz, o professor e crítico de teatro Alberto Guzik, que conta a história de dois homens que convivem com as mortes provocadas pela Aids. O romance é ambientado em São Paulo nos anos 1980.

“Desde o enterro de Joca, tenho a sensação de que ele tá vivo, vai reaparecer. Provavelmente de supetão, no meio da madrugada, poderíamos terminar tomando sopa de cebola no Ceasa. Ou quem sabe com um baseado e um chá de erva-cidreira, quase de manhã, vendo o último filme da tevê.” (trecho extraído do romance Risco de Vida, Alberto Guzik, 1995)


Alberto Guzik em fotogramas de Inconfissões

2.

trecho do roteiro com cena construída a partir de fotografias:

Sequência de fotografias em preto e branco de uma manifestação por direitos de gays e lésbicas em Washington. Ali, Luiz conhece alguém. Eles vão para um apartamento. As meias secam no aquecedor. 



O roteiro do filme foi escrito já incorporando as imagens encontradas no acervo do Luiz. Foram as próprias imagens que guiaram a escrita das cenas e por sua vez toda a estrutura narrativa do filme. A cena acima se manteve no corte final, muito próxima de como foi escrita na primeira versão do roteiro. Gosto desse momento mais para o final do filme, quando já tivemos conhecimento da morte de Luiz; as imagens que ele faz de si em pleno gozo surgem como pulsão de vida.

Inconfissões. 21 minutos; Brasil; P&B e colorido; película (digitalizada); Direção: Ana Galizia; Produção: Ana Galizia e Guilherme Farkas; Vozes: Ana Galizia, Charles Fricks, Geovaldo Souza, Gunnar Borges, Leandro Rebello e Lucas Inácio  Nascimento; Roteiro: Ana Galizia, Felipe Fernandes e Luciano Carneiro; Montagem: Felipe Fernandes e Luciano Carneiro; Desenho de som: Guilherme Farkas; Mixagem: Ariel Henrique; Projeto gráfico: Leandro Felgueiras; Produtora: UFF e Sobrenada

apoiadores dos estranhos encontros
Pedro Faissol, Dinah Oliveira, Julia de menezes nogueira,
lu nunes

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25 – 28 setembro / september 2025

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