Não vim no mundo para ser pedra
realização de Fabio Rodrigues Filho
brasil. 2022. 26 minutos.
em exibição até 6 de setembro
Um samba sobre o infinito: a partir de imagens de arquivo, Fabio Rodrigues investiga as aparições de Grande Otelo. Um rasgo na história brasileira de um “herói inútil” indispensável.
É o passado que volta
Empurrando a gente
Para uma certeza do futuro
Como dizem os versos de Grande Otelo lembrados no filme deste mês dos Estranhos Encontros, o passado possui uma força, um ímpeto, que nos conduz à revelia das nossas vontades. Enfrentar e encarar o passado, suas violências, contradições e também triunfos e alegrias, é sempre um desafio complexo que requer coragem. Não vim no mundo para ser pedra é um novo avanço das investigações de Fabio Rodrigues Filho sobre o cinema e a identidade brasileira, especialmente a presença do negro em nosso imagético. Não é surpresa para quem viu o trabalho anterior de Rodrigues, Tudo que é apertado rasga (2018), uma análise a partir do arquivo audiovisual brasileiro, tanto do cinema como da televisão, sobre a presença (e resistência) de atores e atrizes negros. De um mosaico que reunia Zózimo Bulbul, Zezé Motta, Antônio Pitanga, Lélia Gonzalez, Grande Otelo, Lázaro Ramos, Ruth de Souza e muitos outros, Rodrigues empreendeu um jogo com o público de tensionar as forças que sempre se lançaram sobre estas presenças, oferecendo novos respiros e rupturas possíveis. Foi o seu trabalho de conclusão de curso em Comunicação Social – Jornalismo da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e, segundo o próprio, nunca deixou de ser um exercício, no sentido de uma tentativa e de um gesto de prática – e, portanto, de agir no mundo. Às vezes nos esquecemos de que é este o segundo ato de um cineasta: intervir no mundo (o primeiro é observar).
Rodrigues deu o passo seguinte natural para um pesquisador/cineasta: um mestrado, em Comunicação, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), do qual Não vim no mundo para ser pedra (2022) é o resultado artístico. Ambos os filmes trabalham com imagens de arquivos de materiais disponíveis com facilidade na internet, de filmes bastante conhecidos e entrevistas em programas populares. Não temos trechos raros ou “secretos”, que precisaram ser descobertos pelo pesquisador. O que temos – e isto é que é raro e difícil – é a maneira pela qual Rodrigues nos dá a ver estas imagens, como as seleciona, une, aparta, desacelera, amplia, e entrega-as para que nós mesmos tiremos nossas conclusões e possamos ver melhor estas pessoas e nossa história. Trata-se de encarar a montagem fílmica como um método de conhecimento e de prática em organização do mundo, de revelar as brasas muitas vezes adormecidas nas imagens que nos permeiam.
Os anos do mestrado em pesquisa e elaboração refletem-se no trabalho exibido aqui, como se partíssemos da prosa para a poesia. E não que o primeiro não fosse poético – é muito –, contudo, aqui, concentrado em investigar Grande Otelo, Rodrigues sobe todas as apostas partindo do dilema de como enquadrar um ícone, um dos maiores monumentos do nosso cinema.
Visto hoje, Grande Otelo, nossa maior estrela, sinônimo de cinema brasileiro, pode lembrar uma estátua como tantas que apenas nos observam de cima e de longe, como as várias que parecem assombrar as imagens do filme. Rodrigues evita esta armadilha já no título: nada aqui é pedra, mas carne e palavra, sempre em uma dança com o Macunaíma de Mário de Andrade e de Joaquim Pedro de Andrade – e do próprio Grande Otelo, que assume uma completa fusão com a lenda macunaímica, a ponto de até questionar se não poderia ter sido esta uma inspiração para ele quando se apresentava nos teatros em 1926.
Repleto de círculos, Não vim no mundo para ser pedra é descrito como um samba sobre o infinito, como diz a letra da canção de Paulinho da Viola nos créditos finais, “ao meu jeito vou fazer” – Fabio Rodrigues Filho de fato faz do seu jeito, inclusive recusando dar-se o crédito pela direção (costuma assinar apenas corte e montagem, com modéstia e sem falsidade). Canção cuja percussão retoma o início do filme, com a caixa de fósforos tocada por Otelo, talvez da marca Vitória – aquela que é dada como morta tantas vezes, inclusive no epílogo de Macunaíma (que, aqui, abre o filme e perfaz o motivo de ligação entre as imagens). De trás para frente e de novo avançar, um para lá, dois para cá. Vitória é mesmo a melhor definição da trajetória de Otelo, “milagre dos milagres” como diz em voz o cineasta, diante de tanta adversidade e violência, sempre lembrada durante o filme nos depoimentos e nas entrevistas, muitas vezes camufladas sob sorrisos: Rodrigues deixa que falem as muitas mãos do filme, capazes de tantos gestos abruptos e coercitivos nos entrevistadores, contrapostas às mãos da montagem que muitas vezes seguram como se acariciando os retratos de Otelo.
Um último círculo: o olho de Grande Otelo, repetidamente, ampliado até se tornar uma constelação, um céu que nos acolhe. Alma no olho, sempre.
Brasil para Brasileiros
A sorte, ou o destino, faz com que alguns atores se consagrem no imaginário popular; os rostos que todos conhecem e que, apesar de saltarem de representação em representação – dos tipos mais díspares e singulares –, conservam a própria unidade. Seriam esses os reais protagonistas do cinema? Quero dizer com isso: o motor criativo, o que faz o sangue pulsar e captura a nossa atenção.
Enquanto o diretor é o ser recluso por excelência, de face ordinária e às vezes factualmente feia – além do corpo castigado (Fassbinder) ou pouco atlético (Hitchcock) –, o ator sempre triunfa pelo físico. Sinto-me autorizado a afirmar o óbvio, que todo grande ator é antes um corpo esplêndido a existir em tela com um magnetismo raro. A nossa devoção a esses atores vem da consciência dessa excepcionalidade: queremos estar próximos e atestar que existem, falam, caminham, olham etc.
O erro: a dicotomia entre autor e ator. No sentido em que o realizador propõe, articulando mentalmente estratagemas retóricos, ocupado demais em pensar o seu período e os seus problemas. Como um intelectual, deixa páginas escritas onde ideias se transformam em cenas – sofisticadas, arrojadas, o que seja – e tudo o que está aquém, tudo o que não funciona, é antes erro de tradução. Do coitado e limitado do ator, que não pensa – como Godard certa vez disse, “no máximo empresta o seu corpo, às vezes o seu coração”. Godard, que fora ator no começo de sua carreira, 1961, junto à companheira Anna Karina em Les fiancés du pont Mac Donald, filme de cinco minutos de Agnès Varda. E não perdeu a chance de assombrar seus filmes com a voz, ou ocupar as pontas com a sua presença; Godard dos atores livres e da câmera trêmula, a seguir o corpo indomável pelos apartamentos vagabundos de Paris, pelas ruas de Paris, pelos saguões que se transformavam em território de ficção científica ou de ficção política barata. Com esses atores soltos, seu cinema clamava por vida. De modo que, como em toda a obra de Godard, devemos levar as palavras a sério mas não tão a sério.
Ano passado caí em uma sessão de Henry Fonda for president, direção de Alexander Horwath, que acompanha durante três horas (uma duração expressiva) as andanças de Henry Fonda por diferentes filmes de diferentes realizadores, a fazer a pergunta: será que Henry Fonda tem algo a ver com o destino dos Estados Unidos, talvez do mundo inteiro? Junto a outra pergunta: quando olhamos para a glória de John Ford, será que não olhamos na verdade para a glória de Henry Fonda? No sentido em que é ele, ou reside nele – em seu corpo –, a força criadora, a sustentar aquele universo dramático nos joelhos. E isso só é possível porque Henry Fonda é uma espécie de ser escolhido; a coincidência da sua fama sendo diretamente relacionada à excepcionalidade da situação. Henry Fonda é famoso por ser excepcional ou é excepcional por ser famoso? Tanto faz. O que me interessa é que Horwath – que passou a maior parte da vida profissional nos bastidores dos bastidores do cinema: crítica, curadoria e direção de festivais (Viennale) e instituições (Austrian Film Museum) – ao atravessar tardiamente para o outro lado da câmera elegeu a trajetória de um ator como foco de interesse de seu único e solitário filme.
Pois outros filmes sobre diretores e o que pensam, o que leem e as coisas brilhantes que dizem, há muitos. Talvez Horwath tenha convivido o suficiente com realizadores nos bastidores dessas suas atividades profissionais para descobrir, entre um papo furado e outro, que o que interessa de verdade no cinema é o ator. Por exemplo: eu, que compartilho algumas dessas atividades, sem o mesmo brilho e infelizmente longe de Viena, sei bem que os realizadores tendem ao solitário, ao chato e no limite ao insuportável – mesmo os grandes. Enquanto os atores são seres populares, benquistos, cercados de gente interessante, sempre convidados para as festas e sempre com bons programas para depois das festas.
Enfim. Este é, por suposto, um texto sobre Não vim no mundo para ser pedra, que por sua vez é um filme que coloca Grande Otelo para falar. Na verdade reaproveita falas de Grande Otelo de outras empreitadas, como um programa Roda Viva, indo e voltando nessas falas. Durante esse visionamento eu apenas pensava quão inacreditável era ouvir Grande Otelo fora de um personagem, eu que supostamente amo o cinema e ainda não tinha assistido àqueles trechos. Imediatamente fui ao YouTube e assisti à versão de uma hora e quarenta e seis minutos de Grande Otelo falando no Roda Viva, um vídeo que deveria ser, também imediatamente, exibido nas escolas do Brasil – não só para apresentar esse grande personagem, mas também para nos lembrar da dignidade e da altivez do melhor do brasileiro. Em uma época de maus exemplos é necessário olhar para Grande Otelo e recuperar um pouco da autoestima de nascer e viver por aqui, onde as coisas são tristes e as pessoas recebem pouco, e os ricos não pagam impostos e movem fortunas para fingir que são os reais protagonistas da arte cinematográfica feita no Brasil.
O problema é que Grande Otelo não está mais aqui para protagonizar nossos filmes. Sim, temos as imagens de arquivo, mas seria interessante encontrar, ou melhor, ser encontrado hoje por um tipo contemporâneo de igual envergadura. Como aconteceu com Nelson Pereira dos Santos, Rogério Sganzerla, Júlio Bressane e, descobrimos no filme, Mário de Andrade.
Post scriptum: No filme Não vim no mundo para ser pedra, Grande Otelo conta que fora conhecido como Pequeno Otelo enquanto estudante da Escola Modelo Caetano de Campos, e fala com orgulho essas palavras, “Escola Modelo Caetano de Campos”. Eu, do meu lado, relembro com tristeza o desmonte do Caetano de Campos em setenta e oito, que transformou o prédio original da escola em um local da burocracia governamental. Não fosse a típica e circular mesquinhez paulistana, jovens estudantes poderiam hoje bradar com orgulho serem alunos da mesma instituição onde passou Grande Otelo, antes Pequeno Otelo. A escola poderia ter um grande mural com fotografias do importante ator, talvez um teatro com o mesmo nome, onde futuros atores e diretores pudessem dar os seus primeiros passos na área.
Não vim no mundo para ser pedra. 26 minutos; Brasil; Colorido; digital; Empresa produtora: Terá Filmes; Elenco: Grande Otelo, Zózimo Bulbul, d. Diva Guimarães, Milton Gonçalves e d. Ruth de Souza. Realização: Fabio Rodrigues Filho
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