Estranhos Encontros

DUDA. Realização de EUGENIA CASTELLO, WILLIAM BIAGIOLI. Com BRANCA LORE PIEKARZ, NINA RIBAS, GUILHERME MARIANO, CELSO VALÉRIO STACHESKI, CILENE MARIA LEITE, STEFFANY DE SOUZA CASTRO , DHAFFINY DE SOUZA CASTRO. 2019, Brasil, 15 minutos.

Filmado em 16mm pelas estradas do Paraná, com uma câmera paciente e sensível à sua protagonista, Duda é mais do que um filme de formação: por mais insólito que pareça, é um curta sobre os caminhos que levam ao mar.

Em janeiro de 2020, eu fazia a circulação de um curta-metragem que acabou se tornando um grande êxito na minha carreira, mas com o qual tenho uma relação muito complexa. Esse filme se chama Cinema contemporâneo (2019) e fala sobre uma situação complicada da minha infância; até então, nunca havia parado para me debruçar e entender os impactos posteriores dela em mim – isso é, como pessoa. No mesmo janeiro de 2020, fui convidado para participar da Mostra de Cinema de Tiradentes como realizador. Foi a primeira vez que frequentei aquele espaço, e lá conheci muita gente, vi muita coisa e experimentei muitos filmes. Tudo isso num contexto que eu ainda não havia experimentado: um festival de cinema fora da minha cidade. Eu já tinha viajado para outros lugares com filmes, mas nunca num contexto tão específico – e festivo, de certa forma – como é o de Tiradentes. 

Durante esse tempo, eu ainda – mas já perdendo um pouco isso – era ativo como crítico de cinema, o que me rendeu alguma notoriedade por fazer comentários muito francos e abertos sobre filmes, sem ter receio de retaliação ou reatividade. Falo tudo isso porque naquela edição de Tiradentes eu vi um filme chamado Duda (2019), dirigido por Eugênia Castello e William Biagioli. Vi e não gostei. Vi o filme, esqueci dele, não me lembrava de sua existência… isso é, até ser convidado para escrever este texto. Para mim pareceu bastante problemático aceitar fazê-lo, porque aí sim me lembrei do filme e de como tinha sido inexpressiva a experiência de vê-lo. Até então, eu passara incólume a ele.

Parei para pensar nos meus dois caminhos: 1. em respeito ao filme, recusar o convite – afinal, qual é a verdadeira função de escrutinar uma experiência que não marcou você particularmente? – ou 2. fazer o exercício curioso de pensar como foi que eu mudei, como foi que meu olhar para cinema mudou nos últimos quatro, cinco anos. Decidi tomar o segundo caminho e o que aconteceu foi uma coisa, de certa forma, mágica: pude observar na prática o desenrolar, o desenvolvimento daquilo que a gente chama de gosto, das nossas fruições, porque agora minha experiência com Duda foi inteiramente outra. E isso diz muito não somente sobre o poder desse filme, mas sobre o respeito que a gente pode e deve ter para com a nossa própria história, para com o nosso próprio desenvolvimento.

Duda é um filme de infância, de traumas da infância, de imagens e memórias enevoadas, mas com um registro muito diferente daquele que eu talvez esperava dele na primeira vez em que, tão cinicamente, o julguei. Se o meu, por exemplo, é um filme de arquivo ao modo mais tradicional dessa proposição, Duda o é por outros caminhos. Isso é, não no sentido do dispositivo. Ele é inteiro um arquivo sonhado, uma coleção de memórias dessa protagonista, que está entre lugares, entre estradas, entre a infância e a adolescência, entre a relação boa ou má com a mãe e o restante da família.  E acho que a conexão que sinto hoje com essas imagens vem do lugar para onde elas me levam – num sentido geográfico mesmo. Digo isso porque quando assisti ao Duda pela primeira vez, eu tinha acabado de fazer uma longa viagem – saindo de Recife até Belo Horizonte e, depois, de Belo Horizonte, pelas estradas de Minas Gerais, até Tiradentes. E me parece que Duda, a protagonista do filme – sendo auxiliada pela fotografia onírica e pelo ar que se cria em torno da existência dela –, está também entre lugares.

Ela se torna pessoa enquanto atravessa uma estrada. Atravessa um período com seus patins e sua calça suja; descobre seu lugar no mundo, mas não seguindo a maneira como, talvez, os romances e os filmes de formação fazem a gente crer que essa narrativa deve se desenrolar. Isso porque tudo nesse processo é muito mais fragmentado, muito mais etéreo e, por mais violência que ele tenha, ainda ocupa um lugar de sonho. Tornamo-nos o que sonhamos, ou o que os outros sonham para a gente. Pensando nisso, é curioso também como Duda faz parte de uma tradição – se é que podemos chamar de tradição – muito pouco explorada no recente cinema brasileiro. A de filmes muito pequenos e domésticos que não se expandem para além do que se oferece na tela. Um exemplo é o trabalho apresentado pela produtora Filmes de Plástico, que faz desses “filmes muitos pequenos e domésticos”, mas pretende dar conta de uma ideia de Brasil através de suas imagens.

Duda não quer dar conta de nada, ela quer dar conta de sua existência dentro daquele quadro, dentro daquele restaurante onde trabalham seus avós, da relação com as irmãs, da esperança de ver o mar. Eu não vou aqui tentar cercear o cinema brasileiro no que ele faz ou não faz, no que pode ou não pode, mas é muito claro, para quem acompanha com algum interesse, que são muito comuns as histórias que pretendem ser maiores do que o que está dado. Isso por vários motivos, desde ideológicos a mercadológicos. Mas é de causar felicidade ver um filme pequeno reconhecer uma pessoa em seu pequeno mundo. Acho que é para isso que servem os filmes: para levar a gente no banco do passageiro.

Felipe André Silva (Recife, 1991) é cineasta, curador e escritor. Atualmente colabora com os festivais Janela Internacional de Cinema do Recife e Mostra que Desejo.

Duda dança na beira: encontros com o mar

Mas quem disse que não estou vivendo enquanto sonho?
Fiódor Dostoiévski

Acessamos o cotidiano de Duda aos fragmentos. Antes da família, da estrada ou da protagonista, temos apenas o som da rádio. É hora do horóscopo e, em tom profético, o radialista aconselha o ouvinte virginiano a pôr a mão na massa. Ele alerta: “procure desvencilhar-se de toda espécie de timidez, o acanhamento nunca ajudou ninguém a ser feliz”. E então, de olhos abertos e com todos os sentidos despertos, estamos no carro com Duda, suas irmãzinhas e a mãe.

As meninas estão todas de férias; Duda quer ir à praia. Descobrimos sobre essa vontade dela numa troca distante de palavras e olhares com a mãe – palavras que, embora ditas pela primeira vez no filme, já soam cansadas e batidas; olhares que, mesmo se cruzando por intermédio do espelho retrovisor, parecem nunca se encontrar de verdade. Toda troca entre esse par parece já começar finalizada. O foco da câmera oscila com frequência, como se lhe incomodassem o anseio, tédio e melancolia silentes da menina. No entanto, a lente parece ser a única a enxergá-la, validar seu aborrecimento e sentir alguma empatia por ela.

A ânsia de Duda por ter “férias de verdade” vislumbra essa mesma necessidade de Delphine em O raio verde (Éric Rohmer, 1986). As personagens se entrelaçam na angústia por ver “seu tempo livre” passar sem poderem aproveitá-lo como gostariam, sem sentir essa liberdade que ele promete. Projetam outras frustrações, tão maiores e mais presentes em sua rotina, nessa insatisfação imediata e de solução mais previsível e alcançável. Descer para o litoral ou subir para as montanhas – escapar para onde quer que seja – é sempre mais simples do que processar e enfrentar os conflitos apresentados pelo contato com o outro e consigo; as aspirações e inseguranças de cada um.

Ademais, em Duda – que dá conta de certos traços pré-adolescentes que atravessam décadas – também nos imergimos na subjetividade da protagonista e entramos em sintonia com suas particularidades, mas isso acontece às avessas. Se Delphine supera as fronteiras do próprio corpo, transborda como presença por todo o espaço fílmico e termina de frente para o mar, conhecemos Duda pela atmosfera que se estabelece a partir do descolamento entre ela e os espaços que ocupa. Ela nunca está em nenhum deles por vontade própria, acompanha por empréstimo a vida dos outros.

Apesar da insistência, o mais próximo que a menina chega do mar é esse vaivém ritmado de seus dias, pelo menos em um primeiro momento. Mostrado em descontinuidade, é sempre o mesmo percurso desanimador: casa, estrada, churrascaria dos avós, estrada, casa. É um dia a dia que ocorre no trânsito entre um ponto e outro e se desenrola em lugares igualmente transitórios. Ninguém está neles para ficar. Não é à toa que Duda se sente deslocada; seu cotidiano se realiza em locais de passagem. Mas é no desacelerar dessa repetição sem encanto que se desvela melhor, aos poucos, a vida dos espaços que a menina ocupa e integra – e, inevitavelmente, a vida dela própria. 

Entre os intermináveis “Vamos, Duda”, “Entra, Duda”, “Vem logo, Duda”, vemos a protagonista respeitar contidamente o que a mãe acredita ser melhor. Não há intenção de desrespeito, mas sua presença e seu ócio parecem convidar os adultos a mandarem-na de um lado para o outro, sempre atrás de afazeres emprestados que consomem seus dias de verão. Diferentemente das irmãs mais novas, Duda parece assumir um pouco da vida adulta de cada lugar que visita. Nesses espaços que ficam e passam, sente o tempo e o peso/ leveza condicionados pelo trabalho, pelas tarefas cotidianas. 

Para além de uma efemeridade artificial desses “lugares de estar” – o interior do automóvel, o posto de gasolina, o restaurante à beira da estrada –, ficar neles implica assistir ao seu movimento, ou à forma como a vida acontece ali. No carro, único espaço em que Duda parece ter mais tempo perto (fisicamente) da mãe, vemos a menina sempre perder o banco do passageiro para uma das irmãs. É também nele que a mãe tenta proporcionar o mais debochado dos quase-encontros da jovem com o mar: um cheirinho artificial de oceano para veículos, uma visita ao lava-rápido automático. 

O desconforto e a ironia se estendem para a estrada. Parece cruel que Duda acompanhe todos os dias o movimento dos carros que atravessam a rodovia – muitos a caminho da praia. Ela sempre está a caminho de lá, mas nunca chega. No percurso, para, fica e então volta para o lugar de onde veio. Mas há um momento à beira da estrada em que vemos a menina sozinha, do lado de fora; ela fita a serra e o tédio constante – sempre belamente fabricado e filmado – deixa entrever resquícios de paz nessa solidão. Os sons da estrada ainda se apresentam, eles são um chamado iminente para a realidade, mas essa é a primeira vez em que a desconexão e a distância se mostram uma alternativa mais concreta.

Vemos algo parecido enquanto Duda cuida das batatas cozidas, cortando-as em cubos uma a uma, com cuidado; ou quando ajuda na hora de lavar utensílios num fim de tarde. Mesmo distante da protagonista, como acontece bastante na churrascaria, é bonito e quase documental o cuidado em retratar a cozinha e o restaurante no geral. Sentimos os cheiros, texturas e temperaturas; assistimos ao tempo do preparo; ouvimos o estalar da fritura; vemos o esforço de se lavarem panelões de alumínio, tigelas coloridas, pratos de porcelana… como se a câmera tivesse esquecido de se afastar, acompanhamos também os clientes que dividem esse espaço com Duda por um intervalo mais longo de tempo, uma passagem. 

Mas é na cena final que o afastamento da realidade concreta reserva algum alívio mais potente à menina. Por conhecermos Duda, seu ato de rebeldia – que poderia parecer fraco perto de uma fuga ou outro tipo de enfrentamento dos adultos – se mostra tão coerente quanto libertador. É novamente a câmera quem acompanha, com o foco oscilante, seus tropeços e desequilíbrios – num eco distante da corrida final do pequeno Antoine Doinel n’Os incompreendidos (François Truffaut, 1959). Com os patins para ganhar chão e a música de mar para aquietar os ruídos do mundo, ela chega o mais próximo que lhe seria possível de escapar desta rotina e de suas solicitações; chega o mais próximo que lhe seria possível de seu sonho de praia

Karen Lemes é editora do site dos Estranhos Encontros.

Para esta sessão dos Estranhos Encontros, entrevistamos William Biagioli, um dos realizadores de Duda (2019). Infelizmente, por um conflito de agenda, Eugenia Castello – também realizadora do curta – não pôde participar da conversa.

Eugenia Castello, nascida em Buenos Aires, trabalhou como primeira e segunda assistente de direção em dez longas-metragens e diversos curtas-metragens. Também trabalhou como produtora do Olhar de Cinema – Festival Internacional de Cinema de Curitiba, desde sua primeira edição em 2012 até 2018. Em 2019, assumiu a direção executiva desse festival. Como diretora, realizou o curta-metragem Iaia et Leni (2011) e co-dirigiu o curta-metragem Duda junto de William Biagioli.

William Biagioli é produtor, roteirista e diretor residente em Curitiba, Paraná. Esteve à frente da curadoria, e por vezes organização, de mostras retrospectivas que levaram a Curitiba filmes de cineastas como Stanley Kubrick, Jacques Tati, Luiz Sérgio Person e Jean-Pierre Melville. Roteirizou e dirigiu os curtas-metragens Curitiba: a maior e melhor cidade do mundo (2014) – agraciado com o prêmio de melhor roteiro de curta no FRAPA de 2015 – e O estacionamento (2011) – premiado nos festivais do Rio e no Curta Cinema de 2016. Com Eugenia Castello, dirigiu o curta-metragem Duda, além de ter produzido e roteirizado o longa-metragem Mirador, dirigido por Bruno Costa, com estreia nos cinemas em 2022. Seus filmes foram exibidos em festivais como Entreveus Belfort, Festival Cartagena de Indias, Shorts Mexico, Curta Brasília, Mumbai Shorts e Kinoforum. Em junho de 2017, a convite do programador francês Bernard Payen, seus curtas foram exibidos em uma sessão especial na Cinemateca Francesa.

A seguir, você pode revisitar Duda e a transitoriedade de seus espaços lendo as respostas da realização às perguntas deste mês.

 

É fácil esquecermos que Duda é um filme de 2019 quando vivemos sua atmosfera, que parece retomar a pré-adolescência de outros tempos (com exceção do celular, nada parece datar muito o filme em uma época). Houve o esforço de situar (ou não situar) o filme em algum tempo específico?

Sendo sincero, era mais o esforço de não situar. Acho que essa pergunta é ótima, pois me lembra das boas conversas que tive com a Eugenia sobre a construção do filme. Cada um trouxe um pouco dessas situações familiares, o que acaba por tingir o filme com esse tom nostálgico. Para mim, por exemplo, enquanto respondo [esta entrevista], me lembro das cenas com Duda dentro do carro. Aquele fim de tarde. Lembro que quando rodamos essa cena, espremidos no porta-malas do carro, eu fiquei muito feliz. Era exatamente aquela luz que eu imaginava. Nessa época do ano – setembro –  a luz é mesmo muito linda aqui no Paraná.

Havia também a contribuição do não-lugar, que é esse posto de gasolina, um espaço transitório e de passagem; como é também o estágio em que se encontra Duda. Aquela fase da adolescência em que a gente não é nada. É quase invisível. Mas era uma tentativa, sim, de emular alguns filmes de que gostávamos muito, como o Pude ver um puma (2011), do Teddy Williams. Nele você fica meio que se perguntando: “mas em que tempo se passa isso?”

Pensando no agenciamento entre ficção e realidade em Duda, como funcionou a escolha pela churrascaria que vemos no filme? O quanto interferiram para que ela se tornasse o espaço que vivenciamos no curta – com seu ritmo e suas pessoas?

Essa churrascaria de beira de estrada fica alguns quilômetros à frente da cidade da Lapa, aqui no Paraná. Ela foi buscada até ser encontrada pelo Bruno Costa, diretor do filme Mirador (2022), grande amigo cineasta e, na época, também um grande produtor de locação. Aprendi muito com ele, seguindo uma dica do também amigo cineasta Pedro Merege. Inclusive, como forma de homenagem, os dois figuram em Duda.

A churrascaria é exatamente como está no filme. Aliás, assim como no curta-metragem anterior – O estacionamento (2016) –, também tivemos de rodar com o lugar funcionando e nos amalgamar ao local e às suas dinâmicas. O que “facilitou” para nós, num certo aspecto, foi o fato de ser um feriado – era Dia da Independência, 7 de setembro –, por isso o movimento não estava intenso como o habitual. A nossa diretora de arte na época, Gabrielle Paiva, fez algumas intervenções pontuais, mas aproveitou praticamente tudo o que havia disponível no local.

Ainda pensando nas temporalidades deste curta, gostaríamos de saber sobre a escolha de filmarem em 16mm, que, ao nosso ver, contribui para um senso de anacronia que permeia o filme. Por que decidiram filmar neste formato?

Filmar em 16mm sempre foi um desejo partilhado entre nós dois e um grupo de amigos que trabalhavam e criavam juntos nessa época. Havia também uma série de “desafios” para essa realização que sempre me motivaram muito: conseguir comprar os filmes, achar uma câmera, fazer a revelação… E eu senti que seria uma forma de gerar a sensação de união ao redor da produção deste filme. Mas o fator estético, que certamente sacramentou a escolha, foi o de ter visto o filme As maravilhas (2014), da diretora italiana Alice Rohrwacher, por indicação da Renata Corrêa, diretora de fotografia e assistente de câmera. A Renata acabou não fazendo o filme conosco para – numa dessas coincidências muito curiosas da vida – rodar um filme em São Paulo, justamente com a Hèlene Louvart, fotógrafa do filme As maravilhas, que é rodado em 16mm.

Poderiam comentar um pouco sobre o quanto o filme mudou ou não desde as ideias iniciais até o processo de filmagem e montagem? 

O filme começou a ser gestado a partir da observação de algumas crianças que viviam brincando em um restaurante na cidade de Lisboa. A gente rodou ele coisa de dois anos depois disso, mas a estrutura dele sempre foi muito parecida. Era uma observação sobre essas mulheres de diferentes idades e em diferentes estágios da vida; a mãe com suas três filhas, a avó que comanda a cozinha, as irmãs pequenas e, finalmente, a Duda. Eu não estava muito consciente do quanto estava falando das minhas próprias memórias até pedir para a Eugenia que a gente dedicasse o filme à minha avó Hilda, que faleceu em 2019. Minha infância era ir até a casa dessa minha avó na cidade de Gavião Peixoto e lá passar intermináveis dias brincando no armazém do meu avô Antônio. 

Mas seria mentira dizer que escrevi pensando nisso. Escrevi pensando na família anônima de portugueses que conduziam a pequena tasca de frente para onde eu estava hospedado. No entanto, de alguma forma, toda ficção acaba por ser autobiográfica e, até hoje, penso na crítica de uma pessoa que respeito muito – ela disse: o filme não permite que entremos no universo particular da Duda. Só nos é permitido observar. Eu concordo que tenha faltado um pouco mais de trabalho de roteiro para se aprofundar no estado dessa jovem garota, mas, ao mesmo tempo, há um comentário que eu acho muito legal e que foi feito por uma pessoa no fórum Making Off. Ela diz: “A gente sabe como você se sente, Duda…”. E eu fico feliz por o filme ser capaz de produzir esse sentimento de empatia e reconhecimento.

Quanto ao processo criativo de vocês: como costumam organizar as ideias no início de um projeto e como se deu a realização de Duda

Para exemplificar isso, vou contar uma história verídica da realização do Duda – sei que vai deixar a Eugenia brava: nós abrimos o casting, como quase todo projeto de cinema, em busca dessa atriz-mirim que viveria o papel da Duda. Testamos algumas jovens, mas nenhuma delas parecia ser efetivamente a Duda. Ao menos não para mim. Num domingo em que eu estava na casa da Eugenia, nós precisávamos definir quem seria a Duda. Faltavam pouco menos de dez dias para as filmagens. Fui embora da casa da Eugenia sem que tivéssemos batido o martelo. Na caminhada de volta, pensei em parar em um shopping aqui da cidade para fazer um lanche. Era domingo à noite, eu estava sozinho. Foi então que, na fila do McDonald’s, eu vi a Duda. A Duda não, a Branca. Era a Branca e era a Duda. Mas como ir falar com uma adolescente no shopping sem parecer um pervertido? Eu optei por não falar, é claro. No entanto, por uma destas coincidências absurdas da vida, ela e o pai, o genial GIL, vieram sentar numa mesa atrás de mim. Eu conseguia ouvi-los conversar e era uma conversa de pai e filha muito legal. Tomei coragem e fui falar com eles. Ficamos batendo papo e combinamos que ele levaria a Branca até a produtora na segunda-feira à tarde. 

Quando eles foram embora, eu mandei uma mensagem no grupo dizendo “ACHEI A NOSSA DUDA”. Nem preciso dizer que fui xingado de tudo quanto é jeito. No entanto, no dia seguinte a Branca foi até a produtora, ficou conversando conosco e foi super legal. Foi ela quem deu vida à Duda. Foram dias de filmagem inesquecíveis, que guardo com o maior carinho. Até hoje converso com a Branca e com o Gil. Para mim, o cinema sempre foi uma desculpa para esses encontros acontecerem, para conhecermos lugares novos. Para mim, o cinema é sempre uma oportunidade de descobertas, encontros e reencontros. De abrir um imenso parênteses no correr da vida e torcer para que se consiga capturar algo maravilhoso. Assumir o risco de filmar alguma coisa impossível de se esquecer.

O que incentivou e complicou sua vontade de fazer filmes? E a última pergunta: por que continuar a fazer cinema?

Tenho um grande amigo que disse que Duda é um filme sobre a vontade de fazer filmes. Na visão dele, a Duda querer ir a praia é como alguém querendo fazer filmes. Querendo algo que parece impossível, ou que necessita de uma aprovação superior, de um “adulto”… isso até ela perceber que não, que só depende dela. Ao menos metafisicamente. Eu gosto muito dessa interpretação que acabou por gerar um efeito encorajador em mim. Me parece como aqueles sonhos loucos – no caso de Duda, nem tão louco assim – que a gente conta para alguém que nos conhece muito bem; e essa pessoa é capaz de interpretar o sonho que nos intrigava tanto quase que de bate-pronto.

O cinema começou para mim como uma forma de contar histórias. Eu achava que era isso e pronto. No entanto, aos poucos fui percebendo como ele, para mim, se revelou na forma de infinitas possibilidades de encontros e reencontros. Ali acima falei desse grupo de amigos que queria fazer alguns filmes em película. Pois bem. Hoje, alguns anos mais tarde, dois deles, Lígia Teixeira e Francisco Gusso, não apenas estão casados como estão fazendo o Super Lab Solar, um laboratório para ensinar a revelar filmes. Além disso, fizeram uma edição do Pan, festival de cinema experimental, e foram responsáveis por revelar os 16mm do meu primeiro longa-metragem – que ainda está em finalização –, chamado O mez da grippe. Eu realmente acredito que não sou capaz de mais nada nessa vida. Vou tentar continuar com o cinema até o fim. Nem que seja como a Duda, andando de patins num pátio do posto de gasolina, num fim de tarde na primavera.



FICHA TÉCNICA DO FILME

Duda | Brasil | 15 minutos | Colorido | 2021 

Direção: Eugenia Castello, William Biagioli | Roteiro: William Biagioli | Produção: Ana Catarina, Fran Camilo | Produção Executiva: Ana Catarina | Direção de produção: Ana Catarina | Fotografia: Renato Ogata | Som: Lucas Maffini | Direção de Arte: Gabrielle Paiva | Edição: Eugenia Castello, William Biagioli | Edição de Som: Luis Lepchak | Elenco: Branca Lore Piekarz, Nina Ribas, Guilherme Mariano, Celso Valério Stacheski, Cilene Maria Leite, Steffany de Souza Castro , Dhaffiny de Souza Castro | Produtora: Veleiro Azul, Metafixa Produções, None None





APOIADORES DOS ESTRANHOS ENCONTROS

Franco Cavezale Grisi | Pedro Faissol | Dinah Oliveira | André Luiz Tosatti