PAZ. Realização de JOSÉ OLIVEIRA E MARTA RAMOS. Com JOSÉ LOPES, FERNANDO CASTRO, ANTÓNIO SOARES, PEDRO RUFINO, TOZÉ PEREIRA, ARTUR LOPES, JOSÉ GUEDES, VÍTOR CRUZ, ANTÓNIO FERNANDES, DULCE PASCOAL e NELSON FERNANDES. 2021, Portugal, 24 minutos.
Amizade e companheirismo – mas também uma nostalgia sombria pelo passado de um país – se encontram nesta obra sobre os efeitos do tempo, a presença das pessoas e das coisas. Além de formar um díptico com o longa Guerra, dos mesmos realizadores, o curta deste mês é um filme sobre lugares que resistem e ecos de algumas vidas; é também uma homenagem a um ator mais do que especial.
FOLHA DA SESSÃO, POR PATRÍCIA DOURADO
Exercícios de ficção para a paz
“[o documentário] só vai lá com um bocadinho de ficção”
José Oliveira em entrevista ao festival Punto de Vista, 2022.
Com um “bocadinho de ficção”, José Oliveira e Marta Ramos exercitam nossas ficções sobre paz no curta que leva, em seu título, esta espécie de saudação/desejo: Paz. E para eles o exercício parece acontecer principalmente pela amizade. O filme, segundo Marta Ramos, nasceu da necessidade que sentiram de aproximarem-se do tema; foi após a realização do longa Guerra, lançado no ano anterior. Era 2020, ano imerso em outro tipo de situação humana extrema (a pandemia de Covid-19) e semelhante à guerra. Mas só semelhante.
A guerra – aquela de fardas, infantarias, inimigos (quase sempre inesperados) e ordens (quase sempre cegas) – é muito mais letal às fagulhas de humanidade que nos unem e distinguem, por pouco, daquilo que chamamos “irracional”. Paz e guerra parecem pedaços de um mesmo tecido costurado a fios frágeis, assim como as ideias de racionalidade e irracionalidade; e estamos sempre a um nada de cruzar os fios de um e outro.
Mas, se na guerra há “inimigos”, em Paz vamos encontrar amigos, em um movimento de saudação à amizade e às memórias vividas em conjunto – nas suas várias nuances, em uma locação especial para a equipe: o Clube Excursionista e Recreativo Amigos do Minho, em Lisboa.
Marta Ramos comenta que gosta de trabalhar com temas, pessoas e lugares com os quais ela e José Oliveira têm uma certa convivência. “Temos esta visão de que aquilo que filmamos é sempre documentário, um registo do momento”, e acrescenta: “(desejamos, por isso) ir ao encontro de sítios que conhecemos bem, que gostávamos no fundo de ter aquela recordação, de fixar de alguma maneira”.
Assim acontece também à equipe com quem trabalham – “não é ir para um sítio e filmar ao acaso, é convocar um grupo que a gente já conhece, com quem a gente tem uma relação”. E aconteceu, muito especialmente, ao ator José Lopes, que também foi convidado a escrever o argumento pela dupla de cineastas, dada a intensidade de sua relação com o tema.
José Lopes foi, segundo Marta, “o corpo e a alma”, a matéria viva que conduziu tanto Paz (2021) quanto Guerra (2020). A escolha por trabalhar com ele, o único ator profissional neste curta, deu-se também, assim como a escolha dos demais intérpretes, pelo desejo de que as pessoas pudessem viver a si mesmas no filme: “não queríamos atores a fazer aquelas pessoas, queríamos aquelas pessoas a fazerem elas próprias”; embora ator, Lopes também vive a si mesmo e suas próprias memórias revisitadas.
Esse foi o modo encontrado pela diretora e pelo diretor para realçar o “potencial documental” que tanto os atrai nos registros audiovisuais; um jeito de incorporar, segundo eles, “o frágil, o erro…” um modo de manter a experiência pulsante também para quem assiste. Ampliam, com isso, a sensação de proximidade para o espectador, ao parecer que se está a mirar registros de família, com amigos que parecem seus também – mas assistimos a isso como testemunhas, dado o aspecto documental realçado.
O tema detonador do filme é uma memória recente muito forte para as famílias portuguesas – repletas de histórias e imagens deste período – e também de suas consequências – vividas até hoje, como o são intensamente nas colônias marcadas pelo conflito. A Guerra do Ultramar (ou Guerra das Colônias) durou mais de treze anos (1961-1974) e foi iniciada pelo regime autoritário da época, o Estado Novo Português, que não aceitava os movimentos nacionalistas emergentes nas colônias africanas, notadamente Angola, Guiné-Bissau e Moçambique.
Durante esse período, algo em torno de 90% da população jovem masculina portuguesa foi mobilizada para a Guerra e se despediu da família. O conflito ocasionou mais de 100 mil vítimas entre os civis que viviam nas colônias e cerca de 10 mil mortos e 20 mil inválidos entre os soldados. Foi um conflito longo e desgastante, muito criticado pelo próprio povo português, o que contribuiu diretamente para a queda do regime vigente e culminou na Revolução dos Cravos, de 25 de abril de 1974.
As escolhas de abordagem de Marta Ramos, José Oliveira e José Lopes para contar/cantar o filme Paz – e o sentimento dúbio e difícil que lhes é intrínseco – lembram-nos, em seu modo de fazer, carregado de sensibilidade e força a cada cena, quadro, pausa ou canto, a composição de Nelson Mota e Dory Caymmi, que diz:
“Cantador não escolhe o seu cantar, canta o mundo que vê. E pro mundo que vi, meu canto é dor.
Mas é forte para espantar a morte, para todos ouvirem o som da minha voz…”
Neste filme, os Amigos do Minho juntam-se, cantam e ouvem-se – cantam e contam sobre as dores de um período conturbado, do qual os ecos permanecem. Fazemos o convite para que se juntem aos Amigos do Minho e cantem-contem com o curta-metragem Paz. Que experimentem também a sensação de testemunhar algum tipo de paz – não sem dor, mas na companhia de amigos.
Todas as citações feitas ao longo do texto são trechos transcritos de uma mesma entrevista, concedida ao Festival Punto de Vista 2021.
Patrícia Dourado é doutora e mestra em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. É também investigadora de pós-doutorado no Centro de Investigação em Artes e Comunicação, Universidade do Algarve. Atua como roteirista, professora e pesquisadora.
ENTREVISTA COM JOSÉ OLIVEIRA E MARTA RAMOS
Para esta sessão, conversamos com os realizadores de Paz, curta-metragem em cartaz nos Estranhos Encontros. Marta Ramos nasceu em Lisboa, em 1984, e licenciou-se em Arquitectura na mesma cidade. Colaborou, durante os últimos dez anos, na produção, montagem e realização de filmes independentes. Dedica-se também de corpo e alma ao canto, expressão artística que tem registado em estreita cooperação com José Oliveira. Por sua vez, Oliveira é realizador e professor de Cinema. Fundou o Lucky Star Cineclube de Braga e ministra História do Cinema e Realização na Cascais School of Arts & Design. Os seus últimos filmes foram: Longe (presente na seleção oficial de Locarno 2016), Os conselhos da noite (estreia comercial portuguesa em 2020), Guerra, co-realizado com Marta Ramos (estreia mundial em simultâneo no Doclisboa e na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo). Paz é, por ora, a última obra realizada em conjunto com Marta Ramos.
Que as perguntas e respostas a seguir sejam um mergulho ainda mais profundo e poético nas dobras apresentadas por Paz – assim como em algumas particularidades do fazer cinematográfico de Marta e José.
Sabemos que Paz faz parte de um conjunto de filmes realizados em torno de temas semelhantes e de um mesmo ator. Mas gostaria de saber: o que levou à criação deste filme em particular?
O Guerra teve um longo período de gestação, das filmagens até à montagem e à estreia passaram-se vários anos; a montagem foi particularmente destruidora, visto que José Lopes, o mentor e protagonista do projeto, morreu antes da finalização e não viu o filme. Foi muito complicado encontrar a forma final, a matéria era imensa e delicada. Mas conseguimos acabar e mostrar o filme ao mundo e ficamos satisfeitos. Mas, durante o período pandêmico de 2020, tristes e fechados em casa, tivemos de repente saudades de muitas das pessoas que já não cá estavam e que tínhamos filmado. Lembramo-nos das muitas imagens e sons que ficaram de fora do Guerra e começamos a rever esse material, como uma espécie de terapia ou epifania. Até que decidimos que o trabalho daqueles não-atores foi tão extraordinário que era nosso dever fazer um esforço por o mostrar a todos.
Paz começa com uma epígrafe: “Ouçam o que tem para dizer o homem que está em silêncio”. Tendo isso em mente, é interessante notar que José Lopes passa boa parte do filme não só em silêncio, mas, por vezes, colocado num canto do quadro ou até mesmo ausente (embora ganhe destaque nas primeiras e últimas cenas). Era a vossa intenção conferir um protagonismo a Lopes dentro do filme? Se sim, como isso se desenrolou?
Se virem o Guerra, a presença do José Lopes é absolutamente omnívora, suga tudo à volta dele num processo centrípeto e catártico. O guião [roteiro] inicial continha outras linhas de fuga, acompanhando nomeadamente a vida do seu filho, mas o José tomou conta de tudo, de tão intenso. Em Paz, tudo surge mais diluído, e o José Lopes participa dessa catarse coletiva, dessa suposta paz do presente e dessa ameaça do passado. O Guerra foi o filme que o José nos quis oferecer; o Paz foi um presente nosso e, sobretudo, um infinito agradecimento à sua abnegação. E, obviamente, a todos os que compartilharam este trabalho com ele, entregando-se de corpo e alma, gratuitamente. Quase todas as cenas se passam na associação dos Amigos do Minho, hoje extinta devido ao demónio da gentrificação e do lucro fácil, que funcionava como um Mundo dentro de um Mundo (como em John Ford), onde todos eles podiam fugir ao pesadelo e ao ruído do dia-a-dia para terem paz e comungarem de valores como a amizade, a lealdade, a partilha, a comunhão. Portanto, pensamos que cada um que aparece em Paz é protagonista.
Os diferentes retratos de paz apresentados no filme estão sempre assombrados pela violência. O tédio, a calma e o silêncio (e até mesmo a música) parecem entrelaçar a delicadeza da monotonia com a brutalidade da guerra. Poder-se-ia afirmar que Paz explora um tipo de nostalgia pelas distâncias e elos criados por tempos de guerra?
O José Lopes fez um trabalho de investigação extraordinário para compor a sua personagem e escrever o guião de Guerra. Não foi à guerra por ser “objetor de consciência”, mas leu relatórios científicos, entrevistou psicólogos e psiquiatras, conheceu e privou [conviveu] intimamente com veteranos de guerra, leu romances e viu infinitos filmes sobre o tema etc. E o seu último desejo, que o consumiu e o alegrou, o ajudou a viver, foi construir com verdade este personagem e fazer um filme de homenagem a esses homens e mulheres que também sofreram com isso. No processo – que envolveu conversar, conviver e filmar com veteranos –, descobrimos que para muitos deles esse foi o tempo mais intenso das suas vidas. Nunca mais foram tão vivos, nunca mais foram tão jovens. Quando regressaram e voltaram a cair, abruptamente, nas suas rotinas, tudo lhes pareceu sem chama, numa desilusão estranha e incompreensível. Então, os momentos em que se encontram são sempre de alegria e assombro, cheios de luz e de treva, pois a saudade e o presente digladiam-se numa arena alheia. É inevitável, restava estarmos à altura de ver e de captar isso, e então decidimos utilizar as imagens de arquivo da nossa guerra colonial para tecer todos os tipos de ecos, entrelaçar tempos e emoções, criar rimas, possibilidades e impossibilidades. Perceber como o passado afeta o presente e o futuro.
Poderiam comentar um pouco sobre o quanto o filme mudou ou não desde as ideias iniciais até ao processo de filmagem e montagem?
Foi mudando pelas surpresas atrás de surpresas que aconteciam ao revermos as imagens e sons, para nós longínquos devido ao presente da pandemia. E foi mudando pela inclusão das imagens de arquivo, ideia que não deve ter surgido imediatamente. E, finalmente, pela decisão de não criar um som ilustrativo para esses arquivos, mas sim abstrato, metafórico, evocativo. Foi uma pequena aventura, comparada com a epopeia do Guerra, e quase tudo nos foi dado em estado de graça, de cristal perfeito, embora dolorido, como que abençoados pelo José Lopes e por outros que já tinham partido.
Relativamente ao vosso processo criativo: como se costumam organizar as ideias no início de um projeto e como se deu a realização de Paz?
É sempre a partir de um desejo conjunto, coletivo. De registo de coisas para nós importantes, de aprofundamento de relações, e até mesmo de cura – como no caso destes dois filmes. É um trabalho amador, é preciso dizê-lo, e no melhor dos sentidos: só trabalhamos com pessoas que nos dizem muito, que nos interessam, só filmamos o que queremos, temos todo o tempo do mundo e nenhuma obrigação para entregar um filme. Responsabilidade imensa, pois muitas das vezes as pessoas abrem-se e falam das suas vidas, dos seus sonhos, das suas tragédias e alegrias. E depois há expectativas de verem o filme. E nós queremos que esteja o melhor possível, e por isso costumamos demorar muito. Em resumo, tanto o Paz como outros filmes aconteceram porque não poderíamos deixar de os fazer. Foi uma necessidade urgente.
O que incentivou e complicou a vossa vontade de fazer filmes? E a última pergunta: por que continuar a fazer cinema?
Não pode haver outra resposta: fazemos filmes porque amamos muito algumas coisas e pessoas. O que em termos de mercado complica, mas nos que diz respeito à integridade, deixa-nos em paz.
FICHA TÉCNICA DO FILME
Paz | Portugal | 24 minutos | Colorido | Digital | 2021
Direção: José Oliveira e Marta Ramos | Argumento: José Oliveira, Marta Ramos e José Lopes | Produção: José Oliveira, Marta Ramos | Co-Produtor: Daniel Pereira (The Stone and The Plot) | Fotografia: José António Loureiro, Pedro Bessa | Som: Felipe Zenícola, Bernardo Theriaga
APOIADORES DOS ESTRANHOS ENCONTROS
Franco Cavezale Grisi | Pedro Faissol | Dinah Oliveira | André Luiz Tosatti