todas as rotas noturnas conduzem ao alvorecer
realização de felipe andré silva
brasil. 2022. 24 minutos.
em exibição até 2 de agosto
Alexandre acabou de sair da prisão. Solitário e silencioso, ele encontra algum conforto na amizade com Robson, seu colega de trabalho.
“O cinema é uma máquina que tem o poder de gerar empatia.” Ou assim, parece, convencionou-se dizer. Não apenas dizer como, mais precisamente, dizer para justificar a relevância de uma ferramenta que, de outra forma, seria tida como supérflua à sociedade — justificá-la, isto é, a expressão cinematográfica: desde os estímulos mais perceptivos dessa expressão enquanto articulação de um olhar (um tal olhar que há de ser um enquadramento, um direcionamento da visão) às propriedades eventualmente mais discursivas dessa expressão enquanto forma narrativa, se for o caso (uma tal narrativização que há de ser uma espécie de ordenamento, partindo dos elementos estruturantes à confecção de um plano cinematográfico, das ações representadas às matérias dos seres e das coisas, e passando pela montagem dos tais planos em conjunto, tendo em vista seja o seu significado, seja, por si só, o incitar de sensações).
Logo de partida, já em sua primeira cena, Todas as Rotas Noturnas Conduzem ao Alvorecer (2022) — curta-metragem do cineasta e escritor Felipe André Silva (Recife, 1991) — parece se posicionar dramaturgicamente num sentido que, conquanto não seja necessariamente contraditório à empregabilidade daquela formulação — i.e. “o cinema é uma máquina que tem o poder de gerar empatia” —, o é em relação à normalização dela enquanto credo conciliatório para o fazer artístico e também para a sua apreciação por parte do público. Pois bem, vejamos (e, claro, auscultemos) a conversa entre dois personagens com a qual o filme se abre:
— Qual é a sua primeira reação ao ver uma pessoa passando mal num espaço público?
— Acho que a primeira de todo mundo: tentar entender o que tá acontecendo.
— Então você não diria que a sua primeira reação é a de tentar ajudar?
Esses dois personagens são: o sujeito que atuará como o vetor da trama — um homem recém-saído da prisão, ainda em processo de ressocialização —, a quem acompanharemos através de recortes cotidianos, e o psicólogo que o atende. Pois então, o primeiro movimento do filme é o de colocar seu protagonista na cadeira da análise, um gesto que pode ser entendido como estratégia que visa acentuar a dimensão autorreflexiva do próprio esforço de dramatização. Os dois conversam sobre sentimentos empáticos, sondando a funcionalidade de seu exercício. E a tal da empatia, segundo apreendemos, faz-se operar assim: num pêndulo entre ver e intervir. Extrapolando-a, a conversa acaba também se reportando a uma ideia de enquadramento social das artes — e daí, por que não, de enquadramento social do cinema brasileiro.
Se o cinema não chega a ser um espaço público propriamente dito, ele é parte do que sociologicamente convencionou-se chamar de esfera pública, sendo-o enquanto espaço discursivo constituído midiaticamente, o que no caso se refere aos horizontes comunitários da experiência e dos interesses de uma sociedade civil. Como tal, ele está sujeito a disputas ideológicas de todos os feitios — diante das quais muitos apelam que posições inequívocas sejam tomadas. Há quem reduza a ferramenta midiática à sua função social — a de nos mostrar que “algo está errado” nesse ou naquele aspecto da vida pública, e isso sob o mesmo paradigma espectatorial referido na conversa: ver alguém passando mal e ter a inclinação de ajudar. Eis o caminho cinematograficamente mediado do esclarecimento: da representação de dadas mazelas da realidade vivida ao despertar de uma consciência pretensamente solidária.
Mas não é esse o atalho escolhido pelo filme de Felipe André Silva, que, embora aluda à imagem de um sofrimento exposto em público, nas cenas que sucedem à sessão de terapia se concentra em tornar perceptível — e não assimilável — a angústia de seu personagem. Seus procedimentos composicionais consistem em estabelecer uma dimensão narrativa onde certos aspectos não são cognoscíveis e outros não são visíveis. De forma a conduzir os espectadores a um tipo mais particularmente existencial de acesso à trama. É uma poética (e uma tomada de posição estética) por sê-la, contornando qualquer definição de si enquanto objeto — i.e. o que esse filme quer mostrar e para quê? — em prol das sensações mesmas que faz suscitar.
Não à toa, o filme se encerra com o personagem ouvindo música num fone de ouvido; porém, o que ele escuta nos é interdito. O gesto é sugestivo: o filme não deseja que nos emocionemos como se fôssemos ele, compartilhando dos mesmos referenciais perceptuais, mas a partir dele e de suas emoções, que são aos espectadores, em alguma medida, subjetivamente estrangeiras, além de permanecerem resistentes a categorizações vulgares dos comportamentos sociais. E quanto a isso, é significativo que o filme incorpore as sessões de terapia sem jamais ceder à “terapeutização” do personagem retratado — em sua individualidade, que, como em qualquer obra de ficção, sempre está à mercê de ser tida como sintomática de um coletivo ou não.
Vemo-lo livre, esse leitor de poesia, fisicamente falando ao menos, novamente contribuindo para a sociedade, segundo os parâmetros tão propagandeados da própria, e redesignado ao seu horizonte de expectativas. O que, no final das contas, cabe esperar da vida quando já não se espera mais muito dela? Um senso de acomodação? “Dos trabalhos do mundo corrompida / que servidões carrega a minha vida”, escreveu o poeta português Herberto Hélder. Eu não sei, não posso saber, que fragmento artístico terá tocado o personagem no plano derradeiro, mas copio aqui um que me comove, as palavras finais de um conto da escritora canadense Alice Munro: “Ela espera do jeito que as pessoas que já aprenderam sua lição esperam por bênçãos imerecidas, remissões espontâneas, coisas desse tipo”.
Duas referências para este filme
Quando a primeira versão do filme surgiu, ela era muito diferente em tom, era um filme um pouco mais violento narrativamente, agredia a personagem principal, inquiria sobre seu passado de forma mais incisiva. Quando percebi que não era esse o tipo de filme que gostaria de fazer, me lembrei de uma trinca de personagens principais que, mesmo separados do meu protagonista por idade ou motivação, compartilhavam com ele uma melancolia esperançosa, ou ingênua, na maneira como olhavam para o mundo. Se chamam Michel, Miloš Hrma e Domenico Cantoni, respectivamente as personagens centrais de Pickpocket (1959), de Robert Bresson, Trens Estreitamente Vigiados (1966), de Jiří Menzel, e O Emprego (1961), de Ermanno Olmi. Cada um à sua maneira sente uma dificuldade imensa de se expressar, tanto em palavras quanto no corpo, e isso os sufoca até consequências trágicas. Usei essa corporeidade travada para levar meu personagem para outro lugar, talvez mais luminoso, mais repleto de futuro. Acho que devo um pouco também a um livro chamado Tentativa de Esgotamento de um Local Parisiense, de Georges Perec, onde ele faz o esforço de listar com obsessão tudo o que vê numa praça de Paris. É um livro que curiosamente nega a imaginação mas é muito sobre olhar, escrever, entender o mundo à sua frente e como ele é repleto de possibilidades, e como talvez essa pluralidade de caminhos seja assustadora. Acho que muitos de meus personagens, mas sobretudo esse, temem a escolha, ou fazer uma escolha errada, e o mundo está cheio delas.
Uma sessão conjunta ideal
Não tenho nada contra as curadorias que escolhem a proximidade ao invés da abrasão, mas lembro de alguém comentar, justamente sobre essa pergunta, que exibiria meu filme junto a Felizes Juntos (1997), de Wong Kar-Wai, sem dúvida um grande filme, mas que não traz nada à luz quando posto ao lado de outros filmes sobre silêncios, sonhos de futuro e gays. Particularmente tenho vontade de ver como o filme se comportaria abrindo a sessão para algumas das obras do meu altar pessoal de referências, como The Exploding Girl (2009), de Bradley Rust Gray, e Le Parc (2016), de Damien Manivel; ou simplesmente ignorar o que entendemos como duração ideal de uma sessão e associá-lo a outro curta, como Person to Person (2017), de Dustin Guy Defa. Às vezes a conexão é tão vaga quanto uma pessoa perdida na vida ou uma praça na cidade, mas o jogo de buscar sentido para o encontro pode ser igualmente interessante.
Duas amostras do processo criativo
Essa pergunta me fez notar que tive bem pouco cuidado com o registro de meus processos, talvez porque as ideias e seus desdobramentos me atravessavam tão rapidamente que era difícil entender o que era importante de ser guardado. Mas encontrei uma das versões do roteiro que ainda guardava algumas das características que depois me causaram estranheza. A cena 4, nessa página que compartilhei, explicita um pouco os procedimentos que o filme tinha, uma herança completamente torta do cinema romeno, de criar desconfortos e empecilhos para o protagonista, nesse caso a partir da interação com pessoas do trabalho. Queria falar do terror que acomete uma pessoa introspectiva, especialmente se agarrada à ideia de se esconder do mundo, quando é notada; mas, quanto mais imaginava isso, mais sentia compaixão pela minha personagem. Não sabemos o que ele fez, mas eu sei que ele não precisa de mais nenhuma punição.
Todas as Rotas Noturnas Conduzem ao Alvorecer. 24 minutos; Brasil; Colorido; digital; Empresa produtora: Caprisciana Produções, Correta Cinema; Elenco: Marcus Curvelo, Fellipe Fernandes, Bruno Parmera; Direção: Felipe André Silva; Produção: Hans Spelzon, Felipe André Silva; Roteiro: Felipe André Silva; Produção executiva: Hans Spelzon; Direção de produção: Bibi Soares; Assistência de direção: Pethrus Tibúrcio, Eduardo Monteiro; Direção de fotografia: Gustavo Pessoa; Direção de arte: Carlota Pereira; Figurino: Maria Esther de Albuquerque; Som direto: Ravi Moreno; Montagem: Letícia Barros; Edição de som e Mixagem: Nicolau Domingues; Correção de cor: Gustavo Pessoa; Design de créditos: Felipe André Silva, Ayrton Cruz
apoiadores dos estranhos encontros
Pedro Faissol, Dinah Oliveira, Julia de menezes nogueira, aloísio corrêa, marilene alves lacerda, merry terry kauffman, Yasmin Vereen, izabela feffer, patrícia henriques