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Sessão 1 _ Regresso, direção de Rafael Dornellas (maio de 2024)
Folha da Sessão, por Miguel Fernandes
Não era um grande lançamento, de forma alguma; salvo engano, era a primeira vez em algum tempo que Regresso era exibido a um público — aqueles cinquenta (ou mais, ou menos) que se juntaram nos Estranhos Encontros. Disseram para mim, com modéstia, que “esse eu tinha de ver” (prenúncio de aprovação do filme, sem eu fazer ideia do que se tratava); e então, coisa surpreendente, o fato de Regresso rodar ali em meio a produções paulistanas sugeria algo de um fugere urbem involuntário na programação. Encontrando, porém, violência em vez de paz bucólica, regressava-se de São Paulo a Lucianópolis, cidadezinha enxuta de uns dois mil habitantes, onde o filme ocorre.
Mas parece sempre que o êxito de uma obra assim só é êxito até certo ponto; só é êxito se ele for posto na balança com as circunstâncias em que foi obtido. “Pra um orçamento assim, nada mal”. E foi mesmo um filme de orçamento relativamente baixo e relativamente alto (baixo pelo resultado, alto pelo padrão de produção; vale reforçar, sem juízo de valor, que Regresso é um trabalho de conclusão de curso). Entretanto, não é bem essa a questão. Um bom filme deve bastar pelo que é, não pelo que poderia ter sido. Essa argúcia, esse controle, essa aspereza seca (que corresponde ao local poeirento e despojado, mesmo com o verde) que emanam de Regresso e de sua direção bastam para ver nele o resultado de um bom filme.
De fato, quando começa, escutamos uns acordes familiares (Villa-Lobos), vemos uma paisagem estranho-familiar e, em seguida, um personagem igualmente estranho-familiar. Não sabemos quem é, propriamente, mas o conhecemos de algum lugar, talvez daqueles pistoleiros — sem partida, às vezes sem nome, muitas vezes sem destino — que andavam por outras bandas, em outros filmes.
Ele vem de algum lugar, para o qual havia partido por algum motivo, e para cá regressa, por outro. Sim, esse rapaz — que depois sabemos ser Francisco — talvez se insira de algum modo na tradição dos errantes que buscam justiça, ou vingança, ou conceder proteção; mas sua natureza, repleta de mistério e sugestões, é violenta. E, se nos for permitida alguma relação indireta, veremos que não é totalmente alheia à dos anti-heróis de um, digamos, Estranho sem Nome (Clint Eastwood, 1973) ou de um Rastros de Ódio (John Ford, 1956), em que Clint e John Wayne partem de algum lugar desconhecido, desempenham alguma ação, e, então, partem para algum outro lugar — igualmente desconhecido. Mas é complicada essa coisa da justiça… o terreno é tortuoso, a justiça é torta… foi Antônio, pai de Francisco — como vimos naquela primeira cena noturna —, quem matou por acidente o irmão de Jóça; é Jóça, por reação de vingança, quem quer matar Antônio; e é Francisco, acionado pela mãe (“ele veio pra ajudar”), quem media a “justiça” (não imparcial) nesse lugar. Ali, onde nem polícia nem prece de Deus chegam (“— Cê falou com a polícia, pai? — Polícia?!”), onde justiça e vingança se entrecruzam.
Houve, então, um desequilíbrio nesse núcleo familiar; ou já ocorreu há muito, sabe-se lá porque, quando Francisco partiu. E daí se passa da tradição do western para a tradição de um sério drama familiar (como James Gray?) que, no entanto, não tem muito espaço. Talvez porque a cidade já não acolha mais a família como antes, talvez porque os pais, já velhos, há muito lá arraigados (“A gente não sai daqui. Não dá mais”), não tenham lá outra escolha…
Regresso é, pois, um filme direto — digo, que vai ao cerne da questão sem rodeios — tanto quanto é um filme de sugestão. A sugestão tem seu melhor lugar quando há algum tipo de limitação (falamos aqui de um filme de vinte minutos, portanto não de uma longa-metragem); e essa limitação, bendita atiçadora das mentes criadoras-criativas, é o que dá razão de ser à concisão do filme. Pois se eu havia falado que há correspondência entre o despojamento do lugar e aquele da obra, é porque quase não há falas, quase não há planos dispendiosos, tudo é feito com discrição.
É notável, sem dúvida, a cena em que Jóça fala de seu irmão falecido, de seu passado, de sua família… enquadrado num plano único fechado, vemos esse homem em quem o tempo e o luto inculcaram um “rosto coberto de mato, impedindo qualquer visão pra dentro”, e uma “pele que parece de grossa casca de madeira”. Vemos, num dos únicos momentos do filme em que há longas falas, esse homem falar serenamente a respeito de seu falecido irmão, de sua vida pré-existente; o falecido pai que punha comida na mesa… sua voz concorre com o som dos grilos da noite. Nem seu capanga, que está ao lado, presta resposta a ele. Não há muito afeto; quase todos aí parecem impenetráveis (exceto pelo momento em que Chico, depois de ser cuidado dos ferimentos pela mãe, senta-se ao lado do pai).
Há mesmo, ao final, algo de vazio que me remete, guardadas as certas proporções, àquele John Wayne, àquele vazio sempre presente e resultante de um não-apaziguamento da coisa. Talvez, até mesmo, à futilidade da violência…? Pois veio Francisco, fez o que fez (justiça? Proteção? Com ou sem razão?), mas concluiu regressando — movimento perpétuo — para algum lugar, congelado no horizonte. Por isso é tão seca, quase sem ênfase, porém não anódina ou insignificante, a cena do tiroteio. Por isso é quase tão impenetrável a natureza desses personagens. Por isso, também, Francisco é um desses restless men. Não têm descanso. Nem polícia nem prece dá jeito.